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22 de agosto de 2011

A IGREJA PRIMITIVA



O documento principal de que dispomos para conhecer as primeiras décadas
da Igreja é constituído pelos Atos dos Apóstolos. O valor histórico deste
texto canônico é incontestável. Em sua segunda parte, que concerne a missão
de Paulo, repousa sobre testemunhos diretos. Continua no entanto verdade que
sua exposição cobre apenas uma parte da história do cristianismo primitivo.
Quem escreve é grego e escreveu para gregos. Interessa-se pouco pelo
cristianismo de língua aramaica. Mostra-se hostil ao judeu-cristianismo.
Ora, o primeiríssimo cristianismo se congrega em boa parte da fala aramaica
e a Igreja primitiva permaneceu por muito tempo seriamente comprometida com
a sociedade judaica.

    Quer parecer-nos que podemos hoje completar um pouco o que concerne este
primeiro período do cristianismo, dada a convergência de certo número de
descobertas. Os manuscritos do Mar Morto, dando-nos a conhecer com mais
precisão uma parte do contexto judeu nas origens cristãs, permitem patentear
nos documentos cristãos as características judaicas mais determinadas. As
descobertas de Nag Hammadi, em particular a do Evangelho de Tomé, nos põem
em contato com, uma tradição aramaica dos 1ogia de Jesus. Os escritos
judeu-cristãos, Didaquê, Ascensão de Isaías, tradições dos presbíteros, nos
ajudam a redescobrir uma tradição paralela aos escritos do Novo Testamento
ou seja o eco direto da comunidade judeu-cristã. As inscrições descobertas
pêlos Padres Bagatti e Testa sobre os ossários de Jerusalém e de Nazaré nos
levam quiçá a atingir os símbolos do meio judeu-cristão original.

    Não significa isso que depreciemos o valor dos Atos. Diremos daqui a
pouco o que eles apresentam de insubstituível do ponto de vista da concepção
rigorosa da história da Igreja. Mas os novos elementos de que dispomos nos
permitem corrigir a visão parcial dos Atos na apresentação dos
acontecimentos. Ao le-los, desconheceríamos o lugar essencial que teve em
suas origens o fato Sociológico de o cristianismo pertencer a um meio judeu
extremamente vivo, variado e impetuoso. De fato, a igreja judeu-cristã de
Jerusalém desempenha papel decisivo até a queda da cidade em 70. Os
documentos oficiais nos encobrem esta verdade histórica e é preciso
restabelecê-la.



1. Pentecostes

    É tão impossível escrever a história da Igreja sem começar pela vinda do
Espírito Santo no dia de Pentecostes do ano 30, como escrever a história de
Cristo sem partir da Encarnação do Verbo no dia da Anunciação. Num como
noutro caso, estamos em presença de acontecimentos que pertencem à história
da salvação e se situam ao mesmo tempo na trama da história empírica. Seria
desnaturá-los por completo se os considerássemos apenas sob o segundo
aspecto. Rudolf Bultmann mostrou bem o mau-gôsto insuportável das biografias
de Jesus. O mesmo se diga das histórias da Igreja, que quisessem abstrair de
sua dimensão divina.

    Sobre este ponto, o testemunho dos Atos dos Apóstolos é capital.
Apresentam-nos a criação da Igreja como acontecimento da história santa. Tal
testemunho não pode por razão alguma ser posto em dúvida. Faz jus a
unanimidade da tradição cristã primitiva. Não poderia aliás merecer
suspeição, a não ser por preconceitos racionalistas que recusassem a priori
a existência de acontecimentos sobrenaturais. Os dados essenciais do
acontecimento são os seguintes: de um lado, trata-se da missão do Espírito
(At 2,4) criador e santificador; além disso, o objeto desta missão diz
respeito a comunidade constituída por Cristo durante sua vida publica: é
sobre os doze reunidos (At 2,1 ) que se derrama o Espírito; finalmente, os
doze são investidos pelo Espírito de uma autoridade e de um poder que os
transforma em pregadores e dispenseiros das riquezas de Cristo ressuscitado.

    Se o acontecimento como tal é de uma historicidade incontestável, a
apresentação que lhe dá São Lucas merece precisões. Que se tenha realizado
no último dia da festa das Semanas do ano 30 e em Jerusalém é historicamente
possível. Os doze, mesmo no caso de se terem dispersado após o domingo da
Páscoa, poderiam ter voltado a Jerusalém, para a peregrinação de
Pentecostes. A existência dum fenômeno de glossolalia parece mesmo provável.
Encontramo-lo de fato em outras ocasiões da vida da comunidade arcaica (At
10,46; 11,15; I Cor 14,23). Lucas não teria motivo algum para o inventar.
Pelo contrário, como ainda veremos, procura dissimulá-lo.

    Mas o discurso de Pedro (At 2,14-36) parece um esquema querigmático
.arcaico. O "painel dos povos" lembra o do Gn 10. Sobretudo, diversos traços
mencionados por São Lucas sublinham o paralelo entre a revelação do Sinai e
a do Cenáculo. Assim a alusão ao vento violento e às línguas de fogo evoca a
descrição que Filo dá sobre a teofania do Sinai (Dec., 9 e 11). O milagre
das línguas pode ser cotejado com uma tradição rabínica relativa à revelação
do Sinai. Contrariamente ao que pensa Trocmé, parece provável que Lucas
interprete a glossolalia como milagre de plurilingüismo.

    Após a festa de Pentecostes, começa a pregação do Evangelho pêlos
Apóstolos; e em particular por Pedro, que fala no meio deles e em nome
deles. Escolhidos por Jesus durante a vida pública, investidos por ele de um
mandato oficial, haviam recebido plenos poderes para testemunharem sobre o
acontecimento salvífico da ressurreição e para tratarem em nome de Deus das
condições em que os homens poderiam receber-lhe os efeitos. Mas foi somente
a partir de pentecostes que, cheios do Espirito Santo, eles começam a
exercer os poderes. As circunstancias da pregação sublinham o caráter
oficial de sua missão. Os exegetas realçaram o caráter solene da introdução
do primeiro discurso de Pedro (2,14). O segundo teve lugar no Templo (3,1
1), 0 terceiro diante da assembléia regularmente constituída dos chefes do
povo de Israel.

    O objeto do querigma é a ressurreição de Jesus (2,24; 2,30; 3,15; 4,10).
Tal acontecimento se deu por obra de Deus: "Deus o ressuscitou" (2,24).
Desta afirmação inaudita, os Apóstolos apresentam tríplice justificação. A
primeira é seu testemunho (2,32; 3,15). Empenham nele toda a sua
responsabilidade. O testemunho frisou essencialmente o fato de terem visto
Cristo ressuscitado. As aparições de Cristo ressuscitado entre Páscoa e
Ascensão recebem daqui todo o seu sentido. Visavam fundamentar a fé dos
Apóstolos. São Paulo no-las apresenta como pontos essenciais da tradição que
ele recebeu dos apóstolos (I Co. 15,5-8). Ter sido testemunha de Cristo
ressuscitado é condição para alguém ser Apóstolo ( 1,22). Como o último a
quem Cristo ressuscitado apareceu é que São Paulo foi agregado aos doze (I
Cor 15,9). Eis o testemunho dos Apóstolos que será transmitido pela Igreja:
a tradição é "tradição dos Apóstolos".

    A segunda prova em favor da ressurreição de Cristo é a das obras
poderosas cumpridas pêlos Apóstolos. "Numerosos eram os milagres e prodígios
realizados pêlos Apóstolos" (2,43). Os Atos narram em particular a cura do
paralítico. Tais obras que revelam poder lançam 0 povo em estupor e
assombro, quer dizer, os judeus reconhecem nelas a passagem de Deus (3,10).
Tais milagres se realizam em nome de Jesus (3,16). Pela fé nele é que se
curou 0 paralítico (3,16). 0 milagre aparece assim não apenas como ato
maravilhoso que se realiza para apoiar uma afirmação, mas também como a
própria eficácia da ressurreição, que começa a manifestar-se. Atesta a
presença nos Apóstolos de uma virtude divina que opera neles e por eles
obras divinas, pelas quais os homens podem reconhecer uma presença de Deus e
render-Lhe gloria.

    Resta-nos afinal ainda uma prova que visa em particular os judeus: o
cumprimento das profecias. No caso dos judeus, o problema da conversão a
Cristo se apresenta de modo bem particular; não precisam converter-se a
Deus: crêem nEle. Não precisam nem mesmo converter-se à vinda de Deus entre
os homens: esperam-na. O único passo que lhes pedem é que reconheçam em
Cristo a realização desta espera, mostrando que nEle as profecias
concernentes ao fim dos tempos estavam cumpridas. É o que explica a
importância considerável de tal argumento nos discursos dos Atos. Trata-se
de levar os judeus a reconhecer, na ressurreição de Jesus, o acontecimento
escatológico anunciado pêlos profetas. É mesmo isso que entende São Pedro,
uma vez que, desde o começo de seu primeiro discurso, ele prova que em
Pentecostes se deu a efusão do Espirito anunciado pêlos profetas para "os
últimos dias" (2,17). E esta expressão deve ser tomada ao pé da letra.

    A finalidade do querigma é de fazer reconhecer aos judeus que aquilo que
se cumpriu em Jesus é ação de Deus. Trata-se pois de conseguir reviravolta
total na atitude em relação a Jesus, uma conversão. Apelam à conversão os
discursos de São Pedro (2,38; 3,19). Os judeus terão que reconhecer que se
enganaram, desconhecendo o caráter divino de Cristo e condenando-o como
blasfemo, porque Ele reivindicava a dignidade divina. Agindo assim,
afastaram-se de Deus, como os ancestrais ao perseguirem os profetas.
Reconhecer a divindade de Jesus significa pois converter-se a Deus (3,19). A
ressurreição manifestou que aquilo que em Jesus se cumpriu era divino. A fé
na ressurreição, pelo testemunho dos Apóstolos, é ao mesmo tempo
reconhecimento da falta que cometeram ao crucificá-lo .



2. As Seitas Judias

    Isso nos leva a situar a comunidade primitiva no contexto geral do
Judaismo da época, que sabemos bem complexo. Certos ambientes lhe foram
hostis. De inicio é a hostilidade dos sumos-sacerdotes e dos saduceus, como
o atestam os Atos dos Apóstolos (4,1-3). Os dois grupos não devem ser
identificados. Os sumos-sacerdotes, desde o ano 6 P.C., pertencem à casa de
Seti. Em 30, o chefe da família é Anás e o Sumo sacerdote em exercício
Caifás. São antes de mais nada criaturas dos romanos. Os saduceus por sua
vez constituem um partido ao mesmo tempo político e religioso, agarrado ao
ideal sacerdotal, tendo o Templo por centro. Os sumos-sacerdotes revelam-se
acima de tudo ciosos de sua influência sobre o povo (At 5,17), os saduceus
mais hostis às inovações religiosas (At 4,2). Na realidade, os interesses
são comuns.

    Os Atos descrevem-nos três manifestações sucessivas de hostilidade da
parte deles em relação a comunidade cristã. Num primeiro episódio, Pedro e
João são surpreendidos pêlos sacerdotes, o comandante do Templo e os
saduceus, quando estão a pregar no Templo (At 4,1-2). 0 comandante do Templo
era o chefe da milícia judia às ordens do sumo-sacerdote para manter a ordem
no Templo (veja Lc 22,52). Pedro e João são presos, citados diante do
sinédrio, depois soltos (4,3-23). Uma segunda vez o grupo dos Apóstolos é
preso de novo pelo comandante do Templo e por ordem dos sumos-sacerdotes
(5,17,24) e novamente soltos após a reunião do sinédrio. Esta dupla soltura
dos presos atesta que o ódio votado pêlos sumos-sacerdotes e os saduceus aos
cristãos não era partilhada pêlos outros partidos representados no sinédrio.

    Os próprios Atos no-lo confirmam. Presenciamos de fato durante a segunda
sessão do sinédrio a intervenção do fariseu Gamaliel em favor dos Apóstolos.
Mais tarde São Paulo há de operar diante do Sinédrio com esta oposição entre
saduceus e fariseus (At 23,6,8). O discurso de Gamaliel é evidentemente uma
criação de São Lucas. Encerra um erro histórico evidente, fazendo alusão ao
levante de Teudas (At 5,36) que terá lugar dez anos mais tarde. Mas
representa bem a posição dos fariseus. Estes admitem um messianismo e não
têm razão para condenarem a priori o movimento promovido por Jesus. Ao
contrário os saduceus são hostis a todo messianismo, por motivos doutrinais.
Mais ainda os sumos-sacerdotes que nele vêem uma ameaça para seu poder
pessoal. Ai está, ao que parece, a fonte do ódio com que a casa de Anás não
deixou de perseguir primeiro a Jesus e depois a comunidade.'

    Uma terceira perseguição nasce sem dúvida da hostilidade da casa de
Anás. E, aquela que vitimou, antes da Páscoa de 41, um dos Apóstolos, Tiago
irmão de João. e que prendeu também a Pedro. São visados os mesmos homens e
a origem deve ser a mesma. Segundo os Atos 12,1, a iniciativa partira de
Herodes Agripa 1. Este, depois de ter representado papel importante na
elevação do imperador Cláudio em 41, como recompensa viu restaurar-se em seu
favor o reino de Israel. Sabemos por outras fontes que estava ligado a
Alexandre Alabarco, irmão de Filo, o filosofo. Depois de subir ao trono,
destituíra o sumo-sacerdote Teófilo, filho de Anás, substituindo-o por
Simão-ben-Kantera, que pertencia à casa de Boetos, a mesma que seu avô
Herodes, o Grande, havia favorecido. Alas em 42, substituirá este Simão por
Jônatas, e em 43 por seu irmão Matias, que eram outros filhos de Anás.

    Parece pois que se deva ver nesta mudança o desejo de Agripa de garantir
para si o apoio da poderosa casa de Anás. Daí a coincidência da perseguição
contra os cristãos com a volta da casa de Anás as funções de
sumos-sacerdotes; seria uma relação de causa para efeito. Agripa sacrificou
Tiago ao ódio da casa de Anás. Os Atos dizem que o motivo da prisão de Pedro
foi o desejo de "agradar aos judeus" (12 3). Alias, Agripa pessoalmente não
devia sentir simpatia pêlos "hebreus". Estaria mais achegado aos
"helenistas". Ajuntemos ainda que o episódio não nos interessa apenas pelo
conteúdo. É o primeiro que podemos datar com inteira certeza. Situa-se
efetivamente no ano que precede a morte de Agripa em Cesaréia, morte que os
Atos nos retratam ( 12.20-23). O episódio é contado também por Josefo. E
data-se com segurança para 44. A data de 43 é pois absolutamente segura para
o martírio de Tiago.

    Se a hostilidade dos sumos-sacerdotes e da casa de Anás em particular e
total em relação aos cristãos, a posição dos fariseus se apresenta mais
complexa. Temos visto Gamaliel defender os doze. No entanto durante a
perseguição aos helenistas e a Estêvão (setembro de 36), são eles que
representam o papel principal (At 6,12) e é o fariseu Saulo que aprova a
lapidação (8,1). Tal diferença é significativa. Os fariseus eram favoráveis

aos hebreus e hostis aos helenistas. A diferença de atitude política é que e
capital a seus olhos. A queixa que moviam contra os helenistas era a sua
indiferença em relação à independência judaica, ao Templo que dela era
símbolo, a estrutura legal de Israel (At 6,13-14). Pelo mesmo fato chegamos
a precisar a natureza dos hebreus. Existiam entre eles fariseus convertidos
(15,5). Mas, de modo geral, sentiam-se os cristãos vinculados à pátria
judia, conservando-se fiéis ao culto do Templo, observantes estritos dos
usos mosaicos. Foram eles que constituíram sem dúvida o grupo mais
importante da primeira comunidade. Atraiam as simpatias dos fariseus pelo
seu zelo em favor da Lei.

    É a este meio que pertencem pessoalmente os doze. Nós os vemos fiéis ao
culto do Templo. Sua missão no entanto os obriga a estarem acima dos
partidos. Na realidade o chefe dos hebreus é Tiago, "o irmão do Senhor" (Gál
1,19), que é distinto dos dois Apóstolos deste nome. Ora, é notável que os
Atos façam apenas alusão a ele. São Lucas parece ter utilizado tradições
provenientes dos sadocitas convertidos e dos helenistas e que tenha deixado
na sombra o que constituía no entanto a parte mais importante da igreja
primitiva de Jerusalém. É que de fato Lucas apresenta o ponto de vista de
São Paulo. Com o partido de Tiago este nunca deixou de ter conflitos (Gal
2,12). Corno alem disso acabou por desaparecer depois de 70, apagou-se-lhe a
memória. Mas é um silêncio que falsifica a história dos primórdios cristãos.
Pois o partido de Tiago e a igreja judeu-cristã de Jerusalém exercem
influência dominante no decorrer das primeiras décadas da Igreja

    Poderíamos porém descobrir-lhe alguns traços? No que diz respeito a
pessoa de Tiago, a Epistola aos Gálatas nos deixa entrever sua importância e
suas tendências Os documentos posteriores não-canônicos, saídos dos
ambientes judeu-cristãos, nos fornecem elementos. Verificamos de inicio o
lugar eminente que ocupa Tiago nos documentos oriundos destes meios. E já
isso seria significativo. Assim no Evangelho dos Hebreus, que parece
prender-se a comunidade judeu-cristã do Egito no inicio do segundo século, é
a este Tiago que Cristo ressuscitado aparece primeiro. No Evangelho de Tome,
reencontrado em Nag Hammadi, Tiago o Justo é apresentado como aquele a quem
se devem dirigir os Apóstolos após a Ascensão. Clemente, em suas
Hypotyposes, o menciona antes de João e Pedro como aquele que recebeu a
gnose de Cristo, ressuscitado. Os três Apocalipses de Tiago, reencontrados
em Nag Hammadi, e que são gnósticos, atestam as fontes judeu-cristãs do
gnosticismo. Nos escritos pseudo-clementinos, que utilizam fontes
judeu-cristãs ebionitas, Tiago se apresenta como o personagem mais
importante da igreja (Hom. Clem. 1,1).

    Por outro lado, Hegesipo, que segundo Eusébio (H. E. 4,22,8) é judeu
convertido, nos apresenta um Tiago que não bebe nem vinho nem outra bebida
inebriante, não se barbeia nunca e passa a vida no Templo a interceder em
favor do povo (H. E. 2,23,4). Acrescenta que gozava de confiança dos
escribas e fariseus (2,23,10). Assim se confirmam os laços de Tiago com o
judaismo rabínico. Aparecem eles igualmente na Epistola que lhe atribui a
tradição. Em torno de Tiago se agrupava um certo número de parentes do
Senhor, chama dos desposynes, que ocupavam lugar importante no ambiente dos
hebreus. É o que Stauffer chamou de califado. Transformam-se em centro de
poderoso partido. Verificamos sua tendência de açambarcar a Igreja, conforme
nos levam a entender os helenistas (At 6,1). Após a dispersão dos mesmos,
são eles os donos da igreja de Jerusalém.

    De um tal cristianismo rabínico encontramos elementos nos escritos do
Novo Testamento, embora se tenham originado em outro ambiente e procurem
minimizar a importância do cristianismo rabínico. No entanto é a ele, sem
dúvida, que se prende toda uma literatura targúmica que deixou traços nos
escritos de São Paulo e cujos fragmentos nos foram transmitidos pela
Epístola de Clemente, Epistola de Barnabé e outras obras posteriores.
Efetivamente o targum é um gênero característico dos escribas fariseus. O
targum de Jerusalém apresenta peças que remontam certamente a uma era
anterior à nossa. Os escribas convertidos praticavam o mesmo gênero
literário, emprestando-lhe sentido cristão. Da mesma forma, numerosas
prescrições morais e fórmulas litúrgicas, cujo eco encontramos nos
Evangelhos, se situam no prolongamento do judaismo rabínico.

    E agora a questão dos essênios. Os dados revelam-se singulares. Por um
lado atestam os documentos cristãos semelhanças incontestáveis entre certos
aspectos da comunidade cristã de Jerusalém e o que sabemos deste grupo,
pêlos manuscritos do Mar Morto e pelas notícias de Filo e de Josefo. "
Algumas analogias são impressionantes. Não chegam porém para estabelecer que
a primeira comunidade se situe no prolongamento da comunidade sadocita. Por
outro lado, por falta de documentos, não sabemos se tais usos que são
atestados unicamente em Qumrân não se encontravam também alhures no
judaísmo. Existiam os haburoth ou confrarias, em que a comunidade de bens e
as refeições em comum talvez se verificassem. Parece-nos esta a explicação
mais razoável das analogias que conseguimos verificar.

    É incontestável no entanto que a comunidade cristã tenha partilhado as
esperanças escatológicas com que topamos nos escritos apocalípticos emanados
do ambiente sadocita. Não resulta porém daí que a comunidade cristã tenha
recrutado seus membros do meio sadocita. Sabemos por Filo que os essênios se
confinavam num ambiente restrito, aliás como os fariseus e saduceus. O povo
judaico em seu conjunto se conservava alheio a tais partidos. Sofria-lhes
porém a influência. Assim é certo que a influência sadocita se estendia
muito além do pequeno grupo de membros da seita, tanto mais que formavam um
foco intenso de criação 1iterária. Não há dúvida, sua influência preparou os
ânimos para se abrirem a Cristo. É provável além disso que dos ambientes por
eles influenciados, ambientes em que a esperança escatológica era mais
intensa, muitos se converteram a Jesus.

    Além do mais, é muito possível que tenha havido essênios, no sentido
estrito da palavra, entre os primeiros convertidos ao cristianismo. O
colorido essênio que apresenta o quadro da primeira comunidade nos Atos
talvez se deva ao fato de São Lucas ter utilizado um documento proveniente
do meio cristão de origem sadocita. O quadro não deixa aliás de relembrar
aquele outro em que, pouco antes, Filo evocara a comunidade essênia. A
semelhança é tão impressionante, que Eusébio de Cesaréia chegou a imaginar
que a descrição de Filo se referisse à comunidade cristã primitiva. Por aí
se explicariam quiçá outros traços dos primeiros capítulos dos Atos. Assim
na apresentação dos fatos de Pentecostes, em que descobrimos o cuidado de
São Lucas de sugerir uma comparação com a revelação do Sinai. Ora sabemos
que, no ambiente sadocita, de que nos fala em particular o Livro dos
Jubileus, a festa das Semanas, ou seja Pentecostes, comemorava a revelação e
a aliança. Evocavam especialmente no último domingo da festa, a teofania do
Sinai. Já se notou igualmente que os discursos dos primeiros capítulos de
São Lucas dão provas, tanto pela escolha das citações (Dt 10,16; 18,15-19;
Am 5,25-27; 9,11) como pelo método de exegese, de contatos particulares com
os manuscritos de Qumrân. " Tais discursos pertenciam ao documento que São
Lucas utilizou e refletem assim sem dúvida uma catequese de cor sadocita.

    No entanto temos nós, nos textos dos Atos, alusões mais precisas a tais
convertidos vindos do essenismo, já a partir da primeira comunidade?
Esbarramos aqui num problema estranho: de um lado, é com os essênios que os
primeiros cristãos parecem apresentar mais afinidades, ao mesmo tempo porém
constituem eles a única das três grandes seitas históricas que não foi
mencionada no Novo Testamento. O. Cullmann propôs que se reconhecessem como
essênios convertidos os assim chamados helenistas." Temos que conceder que
os helenistas sejam de difícil identificação. H.-J. Schoeps vê neles uma
situação posterior ao ano 70, projetada por São Lucas para dentro da Igreja
de Jerusalém. Gaechter e F. Trocmé os identificam como judeus da Palestina
que falam o grego; M. Simon como judeus da Diáspora. Na realidade, O grupo
parece ter sido formado de elementos diversos. Segundo as indicações dos
Atos, lá encontramos judeus palestinenses, como Estêvão e Filipe, cujos
nomes atestam a origem helenista. Podiam ter pertencido ao ambiente de
Herodes, como Manaém, ,irmão de leite de Herodes o tetrarca (At 13,1).
Alguns podiam provir da Diáspora, como Barnabé, originário de Chipre (At
4,36). Havia entre eles também prosélitos, quer dizer pagãos convertidos ao
judaísmo, como aqueles de quem se fala em Atos 2, 11 e Nicolau, prosélito de
Antioquia, expressamente designado como helenista (At 6,5). Não se exclui
também que certos essênios, separados pela secessão do judaismo oficial, se
tenham unido a este grupo. Tinham sua afinidade com eles pela hostilidade
que votavam ao sacerdócio oficial e pelo parentesco com o helenismo.





3 - A Vida da Comunidade

    Ao mesmo tempo que nos descrevem o ambiente em que se desenvolve a
comunidade de Jerusalém os Atos nos deixam entrever algo de sua vida. Os
primeiros cristãos continuam a participar da vida religiosa do povo. "Os
milhares de judeus que aderiam à fé são zeladores da Lei" (At 2120). Quer
isto dizer que se circuncidam os filhos que se observam as prescrições
relativas às purificações' que se mantém o repouso do sábado. Muito
particularmente ainda participam os cristãos de Jerusalém nas orações que se
realizam dia por dia no Templo (At 2 46). Vemos Pedro e João subirem para a
oração da manhã (5,21) e para a oração da noa (3,1). Os cristãos aparecem
assim aos olhos do povo como judeus particularmente fervorosos abençoados
por Deus (At 51 3). Convém realçar que os Atos anotam o fato de se dirigirem
todos juntos ao Templo (2 46). Constituem pois um grupo particular no seio
do povo de Israel.

    Os cristãos têm de fato consciência clara de formarem comunidade à
parte. Os Atos designam-nos com o nome de (ecclesia). A palavra significa em
grego uma assembléia oficial. Parece porém que seu uso nos Atos corresponde
ao sentido que lhe empresta a tradução grega da Bíblia a saber o povo de
Deus reunido no deserto (At 7 38). A palavra significa assim que os cristãos
não se consideram apenas como comunidade entre outras mas como o novo povo
de Deus. O termo ecclesia designava de início a igreja de Jerusalém. Em
seguida se aplicará às diversas igrejas locais que se constituirão à imagem
da igreja-mãe. Assim São Paulo reunirá a igreja de Antioquia (14 27) e
saudará a igreja de Cesaréia (18 22). O caráter concreto de Igreja aparece
bem nestas passagens. Por outro lado os cristãos se dão conta de que a
Igreja é uma só e idêntica presente em diversos lugares; a palavra passará a
exprimir o sentido de Igreja Universal.

    De fato ao mesmo tempo que participam na vida do povo os cristãos levam
uma vida própria. Reúnem-se entre si. Tais reuniões se realizam em casas
particulares. Foi esse o caso do cenáculo onde se congregou a primeiríssima
comunidade. Depois tais lugares de reunião se multiplicam. Os Atos nos
referem que os cristãos "rompiam o pão em suas casas" (2,46). Uma dessas
casas nos é conhecida a de Maria mãe de João Marcos onde se reuniu uma
assembléia bastante numerosa para rezar enquanto Pedro estava preso (12,12).
Da mesma forma veremos Paulo exortar os irmãos da casa de Lídia em Filipos
(16,40) e celebrar a eucaristia em Trôade, no terceiro andar de uma casa
particular (20,9). A "câmara alta" mais vasta e não reservada para a
habitação se prestava bem para tais reuniões numerosas. Anotemos ainda o
apoio que as famílias assim davam à Igreja pondo a disposição da comunidade
as próprias casas. São Paulo falará de Áquila e de Priscila e da "igreja que
está em sua casa" (I Cor 16,19).

    Os cristãos reuniam-se freqüentemente. Os Atos falam de reuniões
cotidianas que compreendiam a fração do pão a refeição e orações de louvor
(2,46). Algumas destas reuniões passavam-se à noite. É em plena noite que
Pedro encontra junto a Maria mãe de João Marcos numerosa assembléia em
oração (1212). Um ponto parece certo: a existência da assembléia nas noites
de sábado para domingo. É atestada nos Atos (20,7). Os cristãos participavam
das orações comuns aos sábados depois se reencontravam sozinhos. Parece que
foi esse o costume que os levou a designar o domingo como oitavo dia. A
expressão já se encontra na Epístola do Pseudo-Barnabé e não se explica sem
referência ao sétimo dia da semana judaica. A designação mais corrente vem a
ser a kyriake que corresponde ao nosso domingo. Não e porem certo que as
assembléias cristãs tenham tido lugar sempre a noite. É muito possível que
tenham podido reunir-se em outras horas como em particular para Eucaristia
quando esta se fazia acompanhar de uma refeição o que vem atestado na
Primeira aos Coríntios (11,17-33).

    Podemos formar-nos uma opinião sobre tais assembléias pelo que nos
contam os Atos (2,42): Comportam a instrução a fração do pão as orações. Se
os Atos nos fornecem numerosos exemplos da pregação aos infiéis (querigma)
não nos transmitem exemplo algum de instrução à comunidade. Podemos no
entanto entrever algo pelas expressões que a designam.. Pode tratar-se de
instrução propriamente dita (didachê). Mas o termo convém sobretudo a
catequese preparatória para o batismo. Nas assembléias ordinárias trata-se
antes de exortações (paraklesis) destinadas a fortificar a fé e a caridade
(14,22; 15,32) ou de homilias (At 20,11) ou ainda de palestras familiares.
As Epístolas de São Paulo e as demais Epístolas canônicas podem dar-nos uma
idéia destas palestras e exortações de que são em boa parte o eco.

    Tais instruções eram seguidas pela "fração do Pão". É a expressão
arcaica com a qual os Atos designam a eucaristia (2,42; 20,7). Lembra o
gesto de Cristo partindo o pão depois de ter pronunciado sobre ele as
palavras consecratórias. Cristo instituiu a eucaristia no decorrer de uma
refeição pascal. A bênção do pão e a dos ázimos antes da refeição; a do
vinho corresponde a do cálice após a refeição. Dois ritos que os cristãos
conservaram, mas já agora separados da refeição pascal e realizados ou após
uma refeição, ou sem o acompanhamento de refeição alguma. O que presidia à
eucaristia, depois de ter dado graças, benzia o pão e o vinho estendendo
sobre eles as mãos e pronunciando as palavras do Senhor da última ceia. A
oração da bênção e a extensão das mãos correspondiam ao que encontramos nos
berakoth judeus e nos manuscritos de Qumrân.

    A eucaristia era seguida de "orações", nos dizem os Atos (2,42;12,5).
Tais orações ficavam em particular ao encargo dos Apóstolos e dos
Presbíteros que presidiam à assembléia (ó,4; 13,3). Mas outros membros da
assembléia que tivessem recebido graça para isso também poderiam fazê-la.
Assim os profetas da comunidade de Antioquia (13,3); assim o profeta Ágabo
(11,28). São Paulo fala na Primeira aos Coríntios de tais profetas (12,28).
As mulheres, que estavam excluídas da instrução, podiam pronunciar a ação de
graças. São Paulo precisa que devem ter a cabeça coberta com véu (I Cor
11,7) O diácono Filipe tinha quatro filhas que profetizavam (21,9) Notemos
como a efusão do Espírito Santo se dá principalmente durante a assembléia
cristã (4,31). Esta é o Templo novo em que Deus habita (1 Ped 2,5) e torna
inútil o Templo antigo, com o qual no entanto continua coexistindo.

    Outro aspecto da vida da comunidade de Jerusalém, aquele sobre o qual os
Atos mais insistem, é sua organização econômica. Os Atos falam da ação de
pôr em comum tudo o que os irmãos possuíam: "Vendiam suas propriedades e
seus campos e partilhavam o resultado entre todos segundo as necessidades de
cada qual" (2,44; cf. 4,34). Os Atos citam em particular o caso de Barnabé
que possuía um campo: vendeu-o e deu a soma aos Apóstolos (4,36-37).
Inversamente Ananias e Safira, tendo vendido o campo, retiveram parte do
preço da venda, enganando assim os Apóstolos (5,1-2). O texto precisa que
tal ação comum não era obrigatória A falta de Safira consistiu em ter
mentido à comunidade.

    A interpretação desta ação de pôr em comum os bens é difícil Podemos
entendê-la como instituição de caixa comum para auxiliar os indigentes em
suas necessidades, a maneira do que existia na Sinagoga. É a isso que também
faz alusão o serviço das viúvas (6,1). No entanto, São Lucas parece fazer
alusão a algo mais, a uma verdadeira caixa comum. Isso nos parece hoje menos
impressionante, pois descobrimos que tal uso existia entre os sadocitas. Já
vimos como a narração de São Lucas assume certo colorido essênio. É possível
que se tenha inspirado na descrição da comunidade de Qumrân. No entanto o
episódio de Ananias e Safira lembra de tão perto a disciplina de Qumrân, que
quer parecer-nos ter havido neste particular influência efetiva dos usos
essênios sobre a comunidade de Jerusalém.

    Tais problemas de organização econômica foram igualmente evocados pêlos
Atos a propósito de outra questão. Os Atos nos dizem que em conseqüência dos
protestos dos helenistas, que se queixavam de verem suas viúvas preteridas,
os Apóstolos instituíram entre eles sete personagens, entre os quais
Estêvão. Vimos efetivamente que a semelhança da Sinagoga, os cristãos haviam
instituído um serviço em favor dos pobres. Era controlado pêlos Apóstolos. É
deste controle que eles se desfazem, ao instituírem os Sete. Não se destinam
porém eles unicamente ao desempenho do serviço em favor dos pobres.
Vê-los-emos igualmente pregar e batizar. Na realidade, os Apóstolos se
aproveitam desta ocasião para se munirem de colaboradores. Comunicam-lhe
parte de seus poderes, conferindo-lhos por uma ordenação (At 6,ó).

    A esta altura, surge a questão de saber se tal instituição não se
relacionava apenas com os helenistas. Desde que os Apóstolos sentiam
necessidade de prover-se de colaboradores, não deviam eles fazê-lo também em
favor dos hebreus, como estima Gaechter? O silêncio de São Lucas se
explicaria pela falta de interesse dele pêlos hebreus. Colson parece estar
mais perto da verdade, quando vê nos Sete uma instituição própria dos
helenistas. Os hebreus já tinham seus presbíteros ou anciãos. Tiago o Justo
foi certamente um deles nos mostram (11,30) os cristãos de Antioquia
confiarem aos anciãos (presbyteroi) de Jerusalém os donativos em favor dos
pobres. Estes anciãos preenchem, junto aos hebreus, a função dos Sete, junto
aos helenistas.

    Fato novo é a preeminência que assume Tiago o Justo entre os
presbíteros. Parece mais plenamente associado aos poderes apostólicos.
Quando Paulo vier a Jerusalém em 41 (Gál 1,18), encontrará Pedro e o mesmo
Tiago. No concílio de Jerusalém, é só ele e Pedro que falam. Tiago era pois
certamente então o chefe da comunidade de Jerusalém. E parece além disso
dispor de poderes semelhantes aos dos Apóstolos. Neste sentido podemos
compreender Eusébio, quando escreve que Pedro, Tiago e João não se
reservaram a direção da igreja local de Jerusalém, mas escolheram Tiago o
Justo como Bispo (episcopos) (H. E. 2,1,4). É dele, e não de Pedro e dos
Apóstolos, que promanarão doravante as normas de direção da igreja local de
Jerusalém (At 12,17). Aparece ao mesmo tempo como presidente do colégio
local dos presbíteros e como herdeiro dos poderes apostólicos.

    Assim a estrutura da igreja de Jerusalém assume uma fisionomia própria.
Os Apóstolos são as testemunhas da ressurreição e os depositários da
plenitude dos poderes. Pedro aparece como seu chefe. No início, presidiam e
administravam diretamente a igreja de Jerusalém. Mas se associaram
colaboradores. Entre estes, em primeiro lugar os presbíteros que se ocupam
dos hebreus. Formam um colégio cujo presidente é Tiago. Participa ele numa
medida particular dos poderes apostólicos. Por outro lado, os apóstolos
instruem organização similar em favor dos helenistas. Os Sete correspondem
aos presbíteros dos hebreus. Será difícil sabermos se Estêvão representava
junto aos mesmos o equivalente de um Tiago. De toda forma, a partida dos
helenistas fará com que o colégio dos presbíteros seja a única hierarquia de
Jerusalém.

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